Com Marina: os pobres perderam uma aliada e os ricos ganharam uma legitimadora
Com Marina: os pobres perderam uma
aliada e os ricos ganharam uma legitimadora,
Leonardo Boff e Carlos Biah |
Vale a pena ler, entrevista com Leonardo Boff sobre a atual conjuntura politica, com Mariana Silva.
por Conceição Lemes para o Portal VIOMUNDOLeonardoBOFF.com
Veja a íntegra da nossa entrevista (com alguns retoques do
autor)
Viomundo — Na última
sexta-feira, Marina lançou o seu programa de governo, que previa o
reconhecimento da união homoafetiva e a criminalização da homofobia. Bastou o
pastor Malafaia tuitar quatro frases para ela voltar atrás. O que achou dessa
postura? É cristão não criminalizar a homofobia, que frequentemente provoca
assassinatos?
Leonardo Boff — Está ficando cada vez mais claro que Marina
tem um projeto pessoal de ser presidente, custe o que custar. Numa ocasião, ela
chegou a declarar que um dos objetivos desta eleição é tirar o PT do poder, o
que faz supor mágoas não digeridas contra o PT que ajudou a fundar.
O Malafaia, líder da
Igreja Assembleia de Deus à qual Marina pertence, é o seu Papa. O Papa falou,
ela, fundamentalisticamente obedece, pois vê nisso a vontade de Deus. E, aí,
muda de opinião. Creio que não o faz por oportunismo político, mas por
obediência à autoridade religiosa, o que acho, no regime democrático,
injustificável.
Um presidente deve obediência à Constituição e ao povo que a
elegeu e não a uma autoridade exterior à sociedade.
Viomundo — Qual o risco
para a democracia brasileira de alguém na presidência estar submissa a visões
tão retrógradas em pleno século XXI, ignorando os avanços, as modernidades?
Leonardo Boff — Um fundamentalista é um dos atores políticos
menos indicado para exercer o cargo da
responsabilidade de um presidente. Este deve tomar decisões dentro dos
parâmetros constitucionais, da democracia e de um estado laico e pluralista.
Este tolera todas as expressões religiosas, não opta por nenhuma, embora
reconheça o valor delas para a qualidade ética e espiritual da vida em
sociedade.
Se um presidente obedece mais aos preceitos de sua religião
do que aos da Constituição, fere a democracia e entra em conflito permanente com
outros até de sua base de sustentação, pois os preceitos de uma religião
particular não podem prevalecer sobre a totalidade da sociedade.
A seguir estritamente nesta linha, pode acontecer um
impeachment à Marina, por inabilidade de coordenar as tensões políticas e
gerenciar conflitos sempre presentes em sociedades abertas.
Viomundo — Lá atrás
Marina Silva esteve ligada à Teologia da Libertação. Atualmente, é da
Assembleia de Deus. O que o senhor diria dessa trajetória religiosa? O que
representa essa guinada para o conservadorismo exacerbado?
Leonardo Boff – Respeito a opção religiosa de Marina bem como
de qualquer pessoa. Eu a conheço do Acre e ela participava dos cursos que meu
irmão teólogo Frei Clodovis (trabalhava 6 meses na PUC do Rio e 6 meses na
igreja do Acre) e eu dávamos sobre Fé e Política e sobre Teologia da
Libertação.
Aqui se falava da opção pelos pobres contra a pobreza, a
urgência de se pensar e criar um outro tipo de sociedade e de país, cujos
principais protagonistas seriam as grandes maiorias pobres junto com seus
aliados, vindos de outras classes sociais. Marina era uma liderança reconhecida
e amada por toda a Igreja.
Depois, ao deixar o Acre, por razões pessoais, converteu-se à
Igreja Assembleia de Deus. Esta se caracteriza por um cristianismo
fundamentalista, pietista e afastado das causas da pobreza e da opressão do
povo. Sua pregação é a Bíblia, preferentemente o Antigo Testamento, com uma
leitura totalmente descontextualizada daquele tempo e do nosso tempo. Como
fundamentalista é uma leitura literalista, no estilo dos muçulmanos.
Politicamente tem consequências graves: Marina pôs o foco no
pietismo e no fundamentalismo, na vida espiritual descolada da história
presente e quase não fala mais da opção pelos pobres e da libertação. Pelo
menos não é este o foco de seu discurso.
A libertação para ela é espiritual, do pecado e das
perversões do mundo. Com esse pensamento fica fácil ser capturada pelo sistema
vigente de mercado, da macroeconomia neoliberal e especulativa.
Isso é inegável, pois seus assessores são desse campo: a
herdeira do Banco Itaú Maria Alice (Neca), Guilherme Leal da Natura e o
economista neoliberal Eduardo Gianetti da Fonseca. Os pobres perderam uma
aliada e os opulentos ganharam uma legitimadora.
E eu que em 2010 sonhava com uma representante dos povos da
floresta, dos caboclos, dos ribeirinhos, dos indígenas, dos peões vivendo em
situação análoga à escravidão, dos operários explorados das grandes fábricas,
dos invisíveis, alguém que viria dos fundos da maior floresta úmida do mundo, a
Amazônia, chegar a ser presidente de um dos maiores países do mundo, o Brasil?!
Esse sonho foi uma ilusão que faz doer até os dias de hoje. Pelo menos vale
como um sonho que nunca morre!
Viomundo — O programa
de Marina prevê autonomia ao Banco Central. O que acha dessa medida?
Leonardo Boff — Eu me pergunto, autonomia de quem e para
quem?
Acho uma falta total de brasilidade. Significa renunciar à
soberania monetária do país e entregá-la ao jogo do mercado, dos bancos e do
sistema financeiro capitalista nacional e transnacional. Um presidente/a é
eleito para governar seu povo e um dos instrumentos principais é o controle
monetário que assim lhe é subtraído. Isso é absolutamente antidemocrático e
comporta submissão à tirania das finanças que são cada vez mais vorazes, pondo
países inteiros à falência como é o caso da Grécia, da Espanha, da Itália, de
Portugal e outros.
Viomundo — Essa medida
expressa a influência de Neca Setúbal, herdeira do Itaú, no seu futuro governo?
Leonardo Boff — Quem controla a economia controla o país,
ainda mais que vivemos numa sociedade de “Grande Transformação” denunciada pelo
economista húngaro-americano Karl Polaniy ainda em 1944 quando, como diz,
passamos de uma sociedade com mercado para uma sociedade só de mercado. Então
tudo vira mercadoria, inclusive as coisas mais sagradas como água, alimentos,
órgãos humanos.
A forma como o capital se impõe é manter sob seu controle os
Bancos Centrais dos países. A partir desse controle, estabelecem os níveis dos
juros, a meta da inflação, a flutuação do dólar e a porcentagem do superávit
primário (aquela quantia tirada dos impostos e reservada para pagar os
rentistas, aqueles que emprestaram dinheiro ao governo).
Os bancos jogam um papel decisivo, pois é através deles que
se fazem os repasses dos empréstimos ao governo e se cobram juros pelos
serviços. Quanto maior for o superávit primário a alíquota Selic mais lucram.
Pode ser que a citada Neca Setúbal tenha tido influência para que a candidata
Marina acreditasse neste receituário, velho, antipopular, danoso para as
grandes maiorias, mas altamente benéfico para o sistema macroeconômico vigente.
Viomundo — As
avaliações feitas até agora mostram que o programa econômico de Marina é o
mesmo de Aécio Neves, candidato do PSDB à Presidência. São neoliberais. O que
representaria para o Brasil o retorno a esse modelo? O senhor acha que, se
eleita, o governo Marina teria conotações neoliberais?
Leonardo Boff — Marina acolheu plenamente o receituário
neoliberal. Ela o diz com certo orgulho inconsciente, sem dar-se conta do que
isso realmente significa: mercado livre, redução dos gastos públicos (menos
médicos, menos professores, menos agentes sociais etc), flutuação do dólar e
contenção da inflação com arrocho salarial, desemprego e com eventual alta de
juros.
Como consequência, grassa a fome nas famílias pobres e a
mortalidade infantil se torna inevitável. É o pior que nos poderia acontecer.
Tudo isso vem sob o nome genérico de “austeridade fiscal” ,que está afundando
as economias da zona do Euro e não deram certo em lugar nenhum do mundo, se
olharmos a política econômica a partir da maioria da população. Dão certo para
os ricos que ficam cada vez mas ricos, como é o caso dos EUA onde 1% da
população ganha o equivalente ao que ganham 99% das pessoas. Hoje os EUA são um
dos países mais desiguais do mundo.
Viomundo – Foi
amplamente divulgado que Marina consulta a Bíblia antes de tomar decisões
complexas. Esta visão criacionista do mundo é compatível com um mundo laico?
Leonardo Boff — O que Marina pratica é o fundamentalismo.
Este é uma patologia de muitas religiões, inclusive de grupos católicos. O
fundamentalismo não é uma doutrina. É uma maneira de entender a doutrina: a
minha é a única verdadeira e as demais estão erradas e como tais não têm
direito nenhum.
Graças a Deus que isso fica apenas no plano das ideias. Mas
facilmente pode passar para o plano da prática. E, aí, se vê evangélicos
fundamentalistas invadirem centros de umbanda ou do candomblé e destruírem tudo
ou fazerem exorcismos e espalharem sal para todo canto. E no Oriente Médio
fazem-se guerras entre fundamentalistas de tendências diferentes com grande
eliminação de vidas humanas como o faz atualmente o recém-criado Estado
Islâmico. Este pratica limpeza étnica e mata todo mundo de outras etnias ou
crenças diferentes das dele.
Marina não chega a tanto. Mas possui essa mentalidade
teologicamente errônea e maléfica. No fundo, possui um conceito fúnebre de
Deus. Não é um Deus vivo que fala pela história e pelos seres humanos, mas
falou outrora, no passado, deixou um livro, como se ele nos dispensasse de
pensar, de buscar caminhos bons para todos.
O primeiro livro que Deus escreveu, foi a criação e a
natureza. Elas estão cheias de lições. Criou a inteligência humana para
captarmos as mensagens da natureza e inventarmos soluções para nossos
problemas.
A Bíblia não é um receituário de soluções ou um feixe de
verdades fixadas, mas uma fonte de inspiração para decidirmos pelos melhores
caminhos. Ela não foi feita para ser colocada diante dos olhos, encobrindo
assim a realidade, mas para ser posta atrás e acima da cabeça para iluminar
esta realidade. Se um fundamentalista seguisse ao pé da letra o que está
escrito no livro do Levítico 20,13 cometeria um crime e iria para a cadeia,
pois aí se diz textualmente: “Se um
homem dormir com outro, como se fosse com mulher, ambos cometem grave
perversidade e serão punidos com a morte: são réus de morte”.
Viomundo — Marina fala
em governar com os melhores. É possível promover inclusão social, manter
políticas que favorecem os mais pobres com uma política econômica neoliberal?
Leonardo Boff — Marina parece que não conhece a realidade
social na qual há conflitos de interesses, diversidade de opções políticas e
ideológicas, algumas que se opõem completamente às outras.
Lendo o programa de governo do PSB de Marina parece que
fazemos um passeio ao jardim do Éden. Tudo é harmonioso, sem conflitos, tudo se
ordena para o bem do povo. Se entre os melhores estiver um político, para aceitar
seu convite, deverá abandonar seu partido e com isso, segundo a atual
legislação, perderia o mandato.
Ela necessariamente, se quiser governar, deverá fazer
alianças, pois temos um presidencialismo de coalizão. Se fizer aliança com o
PMDB deverá engolir o Sarney, o Renan Calheiros e outros exorcizados por
Marina. Collor tentou governar com base parlamentar exígua e sofreu um
impeachment.
Viomundo — Marina é
preparada para presidir um país tão complexo como o Brasil?
Leonardo Boff — Eu pessoalmente estimo sua inteireza pessoal,
sua visão espiritualista (abstraindo o fundamentalismo), sua busca de ética em
tudo o que faz. Estimo a pessoa, mas
questiono o ator político. Acho que não tem um manejo político para fazer as
alianças certas. O presidente deve ser uma pessoa de síntese, capaz de
equilibrar os interesses e resolver conflitos para que não sejam danosos e
chegar a soluções de ganha-ganha. Para isso precisa-se de habilidade, coisa que
em Lula sobrava. Marina, por causa de seu fundamentalismo, não é uma pessoa de
síntese, mas antes de divisão.
Viomundo — A
preservação efetiva do meio ambiente é compatível com o capitalismo selvagem
dos neoliberais?
Leonardo Boff — Entre capitalismo e ecologia há uma
contradição direta e fundamental. O capitalismo quer acumular o mais que pode
sem qualquer consideração dos bens e serviços limitados da Terra e da
exploração das pessoas. Onde ele chega, cria duas injustiças: a social, gerando
muita pobreza de um lado e grande riqueza do outro; e uma injustiça ecológica
ao devastar ecossistemas e inteiras florestas úmidas.
Marina fala de sustentabilidade, o que é correto. Mas deve
ficar claro que a sustentabilidade só é possível a partir de outro paradigma
que inclui a sustentabilidade ambiental, político-social, mental e integral
(envolvendo nossa relação com as energias de todo o universo).
Portanto, estamos diante de uma nova relação para com a
natureza e a Terra, onde as medidas econômicas preconizadas por Marina
contradizem esta visão. Temos que produzir, sim, para atender demandas humanas,
mas produzir respeitando os limites de cada ecossistema, as leis da natureza e
repondo aquilo que temos demasiadamente retirado dela.
Marina quer a produção sustentável, mas mantém a dominação do
ser humano sobre a natureza. Este está dentro da natureza, é parte dela e
responsável por sua conservação e reprodução, seja como valor em si mesmo, seja
como matriz que atende nossas necessidades e das futuras gerações.
Ocorre que atualmente o sistema está destruindo as bases
físico-químicas essenciais para a manutenção da vida. Por isso, ele é perigoso
e pode nos levar a uma grande catástrofe. E com certeza os que mais sofrerão,
serão aqueles que sempre foram mais explorados e excluídos do sistema. Esta
injustiça histórica nós não podemos aceitar e repetir.
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